quinta-feira, 5 de março de 2009

O Financiamento da Programação Artística. Comunicação feita no âmbito dos Encontros AlCultur em Lagos a 05.03.09 www-alcultur.org

Começo por agradecer ao Rui Horta e a Rui Martelo o convite que me foi endereçado no sentido de estar presente nesta importante e ambiciosa iniciativa de reflexão sobre a cultura. Num primeiro momento, tive a oportunidade de exprimir o meu desconforto perante a minha presença neste painel em particular, por não perceber imediatamente o tipo de contributo que posso dar ao tópico da programação e suas formas de financiamento.

Não renuncio à minha condição de programados ao lado da minha condição de criador e investigador, mas a sê-lo, programo por “defeito”. Ou seja, a forma como fui acolhendo, apresentando e representado artistas ao longo dos anos teve sobretudo a ver com o facto de não conceber pensar a arte sozinho. Da mesma maneira como não concebo a criação artística sem ter em igual conta a investigação e a formação artística. E por isso, “programar” para mim significa desenhar, imaginar e construir um enquadramento para que diferentes dimensões do fazer e do fruir artísticos se cruzem. Por esse prisma, pode-se considerar que tenho uma experiência importante enquanto “programador” e talvez tenha alguma coisa a dizer sobre a forma como se deve financiar esta actividade.

A Companhia RE.AL, estrutura ligada à dança contemporânea portuguesa da qual sou director artístico, coreógrafo e, não menos importante, sócio-gerente, faz, no próximo ano, 20 anos de existência. Olhado para trás (e já começa a haver alguma distancia para se poder olhar para trás) nem sei como foi possível fazer tudo o que fizemos. E esse espanto alarga-se a uma mão cheia de outras estruturas semelhantes à nossa, muitas delas aqui representadas.
A única explicação que encontro é a forma como herdamos a energia que as gerações anteriores nos deixaram, no seguimento da tensão acumulada durante o período de contenção e repressão fascista. A minha geração tem feito o que tem feito, por nós e por todos os que não conseguiram fazer. Mas estamos, de certa maneira, a cumprir mal o nosso papel. Porque deveríamos é estar a fazer por nós e por todos os que ainda não começaram a fazer. Deveríamos conseguir deixar este “knowhow” que gerámos, bem organizado e preparado, de forma a ser utilizado pelos que aí vêm. Mas isso é uma tarefa que me parece ser cada vez mais difícil. E é disso que vos venho falar hoje.

A pergunta que se impõem é a seguinte: o que é que ficará desta bela história e para que é que ela serviu? E em relação há resposta, até para apimentar o debate, sou radical: receio que nada ficará e para nada servirá. Quanto muito ficaremos para a História e pouco mais. Só que a minha história está a acontecer agora e no futuro de pouco me servirá.

A Dança Contemporânea Portuguesa vive este paradoxo terrível de ter tido um crescimento brutal nos últimos 20 anos, com a afirmação dos seus protagonistas na cena internacional e a criação de uma rede de estruturas extremamente complexa, ao mesmo tempo que ao nível local, é mantida à margem do sistema. E quando falo de “sistema”, embora queiramos fazer parte dele, é evidente que o que existe não nos serve. Por isso temos a tarefa acrescida de muda-lo enquanto o ocupamos. E os “sistemas” mudam-se ao se identificar as “ideologias” que estão ao nível mais subliminar. Por exemplo, esta caravela inocente que nos “persegue” [logótipo do evento AlCultur]... Está aqui desde sempre mas já não a vemos. E aqui está uma das mais valias importantes dos artistas: quebrar padrões, dar a ver o que lá está e sempre esteve, deslocar o centro de gravidade da percepção, um milímetro que seja, para se poder ver o mundo de novo, como se fosse pela primeira vez.

Desde os anos 90 que a minha geração anda a atirar os foguetes, a bater as palmas e apanhar as canas. E se isso será aceitável, vá lá, nos primeiros 10 anos de um percurso, durante o período em que a comunidade se está a afirmar, a ganhar a sua legitimidade e pertinência, começa a ser obsceno passados quase 20 anos. Temos sido obrigados a ser hospedes e anfitriões de nós próprios sem que aquilo que fazemos, por muito que façamos, se inscreva e contamine as instituições. Na verdade, é quase como se não existíssemos. Como se estivéssemos, por falta de comparência, lenta e pausadamente, a desaparecer. Ao traduzirmos as palavras “hospede” e “anfitrião” para inglês obtemos as palavras guest e host. Se as juntarmos, teremos exactamente aquilo em que nos estamos a tornar: g.hosts. Aos poucos vamo-nos tornando fantasmas, imagens pálidas do que nos poderíamos ter tornado. E isso é trágico, sobretudo nesta arte que depende do corpo e que, como nos diz Helena Almeida, “termina nos pés, nas mãos. Acaba ali. De repente, termina.”.

Para suportar esta minha tese, que sei não ser pacífica (mas alguém tem que fazer o trabalho sujo), gostava de recuar ao início deste milénio.

No ano 2000, a RE.AL e o Forum Dança, que contava ainda com Ezequiel Santos na sua direcção, comemoravam 10 anos de existência. Editamos nessa altura um livro a que demos o nome de “DEZ MAIS DEZ” e que aproveitava o pretexto dos nossos aniversários para reunir um conjunto importante de documentos e testemunhos, na tentativa de cartografar a situação da dança contemporânea portuguesa. Estávamos, na nossa previsão, a meio caminho do percurso que importava fazer para solidificar os alicerces de uma politica cultural, que há data se apoiava sobretudo em mega-eventos esporádicos e no talento de uma geração espontânea, daquelas que acontecem uma vez, de vez em quando.

No editorial, Ezequiel Santos escrevia que “Portugal é um país pré-moderno e provinciano. De outro modo, não se compreende que o Estado não tenha investido na dança à razão do que os seus agentes mereciam, devido ao seu crescimento artístico e aos reflexos da sua actividade.” E continuava dizendo que “eventos como a Frankfurt 97, Expo 98 e Porto 2001, têm dado real existência do que não existe. Retirando o enquadramento de circunstância, a fachada é removida para voltar a mostrar uma colecção de escombros.” Terminava a sua reflexão dizendo que “os próximos dez anos dependerão do que se fizer agora, i.e.; ou se faz um investimento sério no sector ou continuaremos a viver no Reino da Estupidez de que Jorge de Sena nos falava. E se assim for (...) os portugueses continuarão a fingir que são europeus, que não são um povo conservador e a ter problemas simbólicos com o seu corpo”.

Um diagnóstico demolidor mas que traduzia na perfeição o sentimento à época. Volta-se a coloca a mesma questão de há pouco, mas agora a partir de um novo prisma: será que passados quase dez anos, este cenário continua a ser actual.

Não quero ser o “pessimista de serviço”, mas em minha opinião, a década em que nos encontramos, ficará para a história como a década das oportunidades perdidas, onde fomos presenteados com mais ministros da cultura por metro quadrado do que qualquer outro pais europeu (numa média de 1.4 por ano) e onde quase tudo ficou por fazer. Sobretudo se tivermos em consideração o potencial da geração de artistas, programadores, produtores, pedagogos ou técnicos saídos do pós-25 de Abril e que atingiu o pico da sua maturidade exactamente durante este período. Depois dos anos noventa, em que se investiu no fugaz e no espectacular, fazendo com que tudo rodasse à volta da figura do autor, exigir-se-ia que a próxima etapa fosse no investimento estrutural a médio e longo prazo. Mas não.

Questões tão elementares como a miserável dotação orçamental para a cultura, a inexistência de enquadramentos legais que protejam os artistas intermitentes, a falta de sensibilidade e visão do Estado para a realidade da formação em dança contemporânea, a inexistência de circuitos de apresentação e espaços de acolhimento que reflictam e potencializem os novos paradigmas da criação artística, tudo ficou em banho-maria, à espera de melhores dias, “parados no tempo”. Mas, ao contrario do Peter Pan, nós vamos envelhecendo e somos assim testemunhas (e mesmo cúmplices involuntários) da nossa própria estagnação. E em cima disto tudo somos ainda tratados por marginais e subsídio-dependentes.

Sobre esta questão, que é séria, importa fazer uma pausa e reflectir. Há alguns anos, quando arrebentou o caso-Rivoli no Porto, escrevi um artigo de opinião no jornal “Público” intitulado “Eu, subsídio-dependente, me confesso”. Assumia que “o tipo de trabalho que produzo, as dinâmicas que promovo e o debate que provoco com a minha arte, só podem existir se for apoiado pelo Estado. E não é porque procure a marginalidade (estou sempre disponível para um contacto directo com o espectador e desenvolvo com frequência iniciativas paralelas para contextualizar e enquadrar o que faço), antes porque um gesto contemporâneo, por definição, questiona o adquirido e coloca-se por isso e por princípio em causa. Ou seja, faz exactamente o contrário de um gesto convencional, convergente ou consensual: não entretêm. E devo dizer que nada tenho contra o entretenimento. Consumo-o como outra pessoa qualquer e sei que exactamente por isso nunca deixará de existir. Serei eu a pagá-lo. Mas a minha arte, a partir de um prisma meramente mercantil, está condenada ao fracasso. E em nome de uma exigência artística, política e cívica, não faço concessões. Porque acredito, ingénuo, arrogante mesmo, que o que faço contribui para preservar a atenção e a tensão necessárias para nos mantermos atentos ao tempo presente. Condição para a preservação de um espírito contemporâneo, tolerante e democrático.”

Cruzo-me com frequência com alguns dos meus companheiros de geração da dança europeia, todos eles subsídio-dependentes em fase “terminal”. Não vale a pena citar nomes, porque todos os conhecemos. E é em conversa com eles que me apercebo o quão atrasados estamos enquanto comunidade e país. Porque com eles tenho um termo de comparação: começamos mais ou menos ao mesmo tempo, partimos da mesma linha de partida, partilhamos os mesmos palcos, mas continuamos a anos-luz de distancia do tipo de financiamento e das condições de que têm para trabalhar.

Só para dar um exemplo recente e actual, a Alemanha lançou há dois anos um programa a que deu o nome extraordinário de TanzPlan (plano para a dança) e onde o principal objectivo é “desenvolver projectos de longo termo ligados à dança, baseados numa lógica de colaboração entre o poder local, o poder central, os teatros, as universidades, as escolas, os coreógrafos e os bailarinos.” Para desenvolver esse plano, têm à sua disposição 12,5 milhões de euros para gastar em cinco anos. Este valor em nada afecta as verbas que já existem para financiar a cultura. É dinheiro “a mais”. Eu sei que não somos a Alemanha (nem a França, nem a Bélgica, nem a Suíça, nem a Espanha, nem a Áustria… e por aí fora) e esta é uma comparação injusta se olharmos exclusivamente do ponto de vista financeiro. Mas eu não estou a comparar números. Estou a comparar visão, estratégia e coragem politica. E se me perguntarem a mim, um artista “empreendedor” (como se diz na linguagem economiquês) é só isso que espero dos políticos: visão, estratégia e coragem. O resto fazemos nós. O seu trabalho não é substituírem-nos como tantas vezes tentam (sobretudo quando precisam de ornamentar as suas montras, para receber os votos dos “indígenas”), mas criarem as condições para que a arte de cada momento, aquela que traduz o nosso tempo, possa emergir. E para isso as ideias, os espaços, os corpos e por acréscimo, as politicas, têm que ser abertas e sensíveis aos movimentos das pessoas. Mesmo quando aparentam estar paradas.

E será esse, talvez, um dos problemas da invisibilidade da Dança Contemporânea: como não nos estamos sempre a mexer, a olho nu aparentamos estar parados. Mas se olharmos com mais atenção, como nos diz o teórico e ensaísta André Lepecki, a Dança Contemporânea “muda lugares por via de uma radicalidade que lhe é própria: a co-presença de corpos em reformulação das suas normas interactivas.” E continua dizendo que “a dança, mais do que ser a linguagem do “indizível” é, antes de tudo, a manifestação física de uma teorização radical do corpo – a dança problematiza qual o lugar que o corpo biológico, o corpo social e o corpo fantástico, sempre em processo de serem (re)inventados, podem habitar”.

Essa capacidade de mudar lugares que a Dança tem, “num eterno estar-em-passagem”, confere-nos características difíceis de catalogar e “agarrar”, mas nem por isso menos palpáveis ou concretas. Em Dança Contemporânea nem tudo é “espectáculo” e muito do que se passa, passa-se “entre” as coisas, nos espaços-fronteira entre o pensamento e a acção, a ficção e o documental, o corpo e “tudo o resto”. E se nos quiserem “agarrar” têm, como nos volta a lembrar Lepecki, que “suspender os vossos hábitos (motores e políticos) de “estabilidade”, “centro”, “sentido” e “gosto”.

É verdade que este pensamento começa agora, timidamente, a encontrar algum eco nas estratégias culturais do Estado. E um exemplo disso é a inclusão, nos últimos concursos para iniciativas não-governamentais da DGArtes da formação, das residência e da investigação, lado a lado à criação e difusão de obras. É um passo positivo porque reconhece uma realidade que há muito é praticada no terreno, mas ainda não se trata do gesto corajoso, estratégico e visionário de que falava à pouco... esses gestos têm que ter outra dimensão e tem sobretudo que ser iniciativas do Estado. Não pode ficar ao nível das iniciativas não-governamentais, ás custas e a reboque dos independentes.

E entre tantas coisas que estão por fazer e a que já fiz referencia e outras que não referi, gostaria de aproveitar esta oportunidade e fazer uma pergunta frontal a quem de direito: o que é que vão fazer com os cine-teatros construídos nos últimos anos? Com que orçamentos vão funcionar? Com que equipas vão operar? E já agora, uma vez que é este o tema do nosso painel, quem é que os vai programar?

Se tivermos em consideração o modus operandi dos nos nossos Teatros Nacionais, não augúrio nada de bom. Por ser fresca e paradigmática do que receio vir acontecer com os cine-teatros, a recente nomeação do director artístico do Teatro Nacional São João, merece alguma atenção.

Como sabem, por iniciativa própria, Ricardo Pais não vai continuar à frente do S. João, tendo sido substituído por Nuno Carinhas. Até aqui nenhum problema. Nuno Carinhas é um profissional competente, com provas mais do que dadas e com o perfil adequado para o cargo em causa. Mas o que me incomoda, neste caso como em outros, é a forma e não o conteúdo. Ainda antes de se ter encontrado o novo nome para a direcção artística do teatro, o nosso Ministro da Cultura, ao ser questionado sobre a sucessão, afirmava, numa reportagem para a SIC, que o próximo director será uma “solução consensual” e será uma transição feita “em colaboração” com o director demissionário. Quando confrontado pela jornalista com a estranheza dessa observação, Ricardo Pais disse: “que não, que não acha nada estranho que isso acontecesse. Que o que é natural é que possamos sugerir ao governante, que não conhece a casa tão bem como nós, quem é que poderá estar em condições para continuar o projecto”.

Na prática, a “oeste nada de novo”. Não é mais do que uma pequena variação do slogan “west coast of europe” que este governo quer colar a Portugal à força, com o argumento que o “oeste está associado à descoberta e à inovação”. Penso que ao imaginarem este slogan, os criativos que desenharam a campanha enganaram-se no “oeste” de referência: não se trata do actual oeste californiano, com os Silicon Valleys e afins, mas do velho “far-west”, repleto de índios e cowboys.

Talvez esteja a ser ingénuo... mas qual é o problema dos concursos? Porque é que não se investe algum tempo a desenhar o perfil para um cargo com estas características, a definir-se um “caderno de encargos”, a estipular um período e um orçamento de base para a sua execução e... abram-se concursos. É simples. Faz-se há muitos anos de leste a oeste, com resultados satisfatórios. Se esse principio ético se aplicasse aos Teatros Nacionais, poderia servir como exemplo e sinal pedagógico a seguir pelas dezenas de cine-teatros inaugurados de norte a sul de Portugal.

O problema destas nomeações “ad hoc”, é perpetuar-se um modo de operar que me parece extremamente nocivo para a saúde e para a transparência da “coisa publica” em Portugal. No fundo é a prova de que não existe uma política cultural para o país, construída por antecipação, mas uma politica feita à medida de cada momento, situação ou pessoa. E, sobretudo, esta politica faz com que o Estado não se comprometa, colocando os programadores a trabalhar na corda bamba, dependentes de resultados sempre subjectivos e definidos a posteriori. Se os cargos fossem atribuídos por concurso, a partir de uma dotação orçamental clara e objectivos concretos, os programadores que se candidatassem, sabiam ao que iam e estariam mais protegidos pela legitimidade inerente ao enquadramento democrático desse dispositivo. Assim, quando as coisas correrem mal (e sabemos que correm sempre mal, mesmo quando correm bem), o Estado lava daí as suas mãos, lançando as culpas para o programador, que por sua vez culpa o Estado, que por sua vez culpa o programador, que por sua vez culpa o Estado...

Termino dizendo que eu acho é que o Estado tem a obrigação de responder pela politica que defende em vez de estar sempre a passar a “batata quente” para esta ou aquela figura mais ou menos consensual, num “tu cá-tu lá” confrangedor que nem sempre acaba no carinhoso mas perverso: “porreiro pá”.